Dez anos após a decisão histórica e unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) que equiparou judicialmente uniões homoafetivas e heteroafetivas, casais homossexuais ainda sentem seus direitos ameaçados no atual cenário político. Desde as eleições de 2018, a estudante de obstetrícia da USP Gabriela Torrezani e sua esposa, a fotógrafa Fabia Fuzeti, estão em estado de alerta. O casal teme que a postura do Governo Federal sobre o tema represente diferentes níveis de ameaças conceituais não somente aos LGBTs, mas a todas as minorias.
– [O presidente] fala na cara dura que ‘viado tem que apanhar, tem que morrer’. O discurso é muito nocivo. Tem a questão de políticas públicas, que também são nocivas e são abandonadas. Os editais LGBTs, como o que participamos, foram cortados totalmente ou diminuídos. É um governo que prega a ignorância total e o desrespeito à todas as diversidades, e ai é muito perigoso -– afirmou a estudante que junto a Fabia, produziu o documentário sobre o próprio casamento chamado “Vestidas de Noiva – Um Documentário Sobre o Casamento Homoafetivo no Brasil” (2015).
O ex-minsitro Ayres Britto, relator do julgamento de equiparação das relações entre pessoas do mesmo sexo, tranquilizou a comunidade LGBT a respeito de um possível retrocesso nos direitos já garantidos. De acordo com ele, “a mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”, referindo-se a uma citação do físico Albert Einstein.
O jurista frisa a existência das cláusulas pétreas, que proíbem tal regressão e garantem o avanço da jurisprudência. Ele explica que qualquer tentativa de retirada dos direitos LGBTs já conquistados seria inconstitucional. Mas, relembra que é necessário paciência para que se alcance uma sociedade livre de pré-conceitos.
– Roma não se fez em um dia. Muita coisa demanda a passagem do tempo, temos que admitir isso. Porque certas mentalidades mais atreladas a esse defeito de fabricação colonial da gente, não batem em retirada tão facilmente e insistem em seu obscurantismo. Civilização é uma conquista diária. Agora, é possível dizer que se democracia não vence por nocaute, vence por acumulo de votos, o que é processual – disse o ex-ministro Ayres Britto durante entrevista coletiva.
O ativista e diretor-presidente da Aliança Nacional LGBT, Toni Reis, casado há 31 anos com o britânico David Harrad, afirma que a importância da oficialização do casamento é a segurança jurídica adquirida. Além disso, celebra a conquista de poder levar os filhos ao posto de saúde e serem reconhecidos pelo Estado como família.
“Família é o mais seguro pedaço de chão da vida de cada um de nós. O direito de casais homoafetivos também constituírem famílias é um direito assegurado pela Constituição como tão fundamental quanto expressão da dignidade humana.”
A citação foi feita pelo ex-ministro Ayres Britto ao comentar sobre a garantia de pessoas LGBTs criarem núcleos domésticos diferenciados como expressão de um constitucionalismo fraternal. Para ele, na vida em comunidade, os casais homoafetivos se sentem no estado de fraternidade, segurança e de dignidade da pessoa humana.
– O casamento nada mais é do que um direito humano. A pessoa foi feliz, casou, tem os seus direitos garantidos. Ganharam recursos juntos, quando separam tem que ter os direitos. É um direito nem menos nem mais, é igual para heteros e para membros da comunidade LGBTQI+ – declarou Toni Reis.
Porém, o ativista disse ainda que “o Estado não está preparado para a comunidade LGBT” ao ser questionado sobre as dificuldades após a conquista do casamento civil na época. Ele conta que inicialmente a justiça autorizava apenas que ele e o esposo adotassem meninas acima de dez anos. Em seguida, o Ministério Público recorreu a essa decisão e foi preciso levar a pauta ao STF. O casal lutou por sete anos e hoje são pais de três jovens: Alysson (20), Jéssica (18) e Felipe (16).
Toni Reis com o marido e os três filhos: “Se o amor pode afetar as crianças, que vivamos o amor”, declara o ativista (Arquivo pessoal)
O sonho de Gabriela Torrezani sempre foi se casar. Ela conta que quando era criança se vestia de noiva e encenava a cerimônia todos os dias com o pai. Já Fabia, que se considera uma pessoa pouco convencional, nunca havia pensado em casamento, mesmo quando esteve em um relacionamento de dezesseis anos com um homem.
Elas se conheceram em abril de 2012 e ficaram juntas após alguns meses. Em 2014, decidiram oficializar a união e realizar o sonho de Gabriela. Enquanto planejavam a própria cerimônia, o casal decidiu produzir o filme “Vestidas de Noiva”, que mostra o cenário dos casamentos LGBTs na época e a trajetória das duas noivas.
– Acho que a gente precisa conhecer a nossa história para poder avançar sempre nas nossas lutas. E o documentário faz um retrato daquele momento histórico que foi muito importante para que daqui a vinte, trinta anos, não sabemos como vai estar a situação dos LGBTs no Brasil, esperamos que muito melhor, as pessoas possam olhar para trás e ter uma referência. É um documento histórico também, senão fica muito difícil avançar – afirma Gabriela ao falar sobre como o documentário pode contribuir com a luta LGBT. Para Fabia, além da visibilidade, o objetivo era “tentar normalizar para aqueles que não veem como uma coisa normal”.
Atualmente, Gabriela e Fabia estão envolvidas em diversas causas relacionadas à comunidade LGBT. O casal possui um blog de viagens e um canal no YouTube, ambos chamados “Estrangeiras”, onde falam de, para e com a comunidade, além de postar matérias, dicas, fotos e relatos voltados para o turismo LGBT. Recentemente, trabalharam com uma produtora de vídeo no “BRILHE – I Festival Internacional de Circo Drag”.
Dentre os projetos futuros estão a criação de um Podcast e, como Gabriela é também doula e estuda para ser parteira, pretende trabalhar na área de pesquisa e de atenção especializada à população LGBT, ao parto de mulheres lésbicas, bissexuais, cisgênero, homens transgênero e quaisquer tipos de pessoas em todos os espectros de gênero que vão passar pelo ciclo sexual de gravidez, parto, pós-parto e amamentação.
– Quando você faz parte de uma comunidade, vive essa causa, é muito difícil não estar ligado à projetos, ainda que indiretamente. Literalmente é uma questão de vida ou morte. A comunidade se cuida e luta. É bem cansativo na realidade em que vivemos mas vamos fazendo. A gente tenta entrar em todos os projetos possíveis, não tem como escapar. Nós somos membras da IGLTA (Associação Internacional de Turismo LGBTQ+), que faz um trabalho interessante com as agências de turismo para pensar em algo sustentável, que converse com a comunidade LGBT de dentro para fora e empregue pessoas da comunidade. Não basta criar apenas o “bar gay”, mas pensar em como a indústria do turismo tem que abrir as portas para essas pessoas – declarou Gabriela. “Fazer treinamentos para realmente atender o público bem e não apenas ir atrás no nosso ‘pink money’”, reiterou Fabia, fazendo referência ao poder de compra da comunidade LGBTQI+.
Fábia (esquerda) e Gabriela criaram o documentário visando também a representatividade lésbica no audiovisual (Arquivo pessoal)
REPERCUSSÃO E AÇÕES DA ÉPOCA
Ao receber a causa há dez anos, Ayres Britto e seus assessores, técnicos e juízes auxiliares fizeram um levantamento de duas constituições estaduais brasileiras que já equiparavam as relações e se assemelhavam ao que viria ser decidido pelo STF: a do Sergipe e a do Mato Grosso. Durante a tramitação do processo, quando começou a ser divulgado, a recepção popular não era positiva e muitos foram contrários a equiparação. Porém, na medida em que a imprensa se interessou pelo tema e criou uma boa repercussão sobre o assunto, a rejeição diminuiu.
O relator Ayres Britto relembrou ainda alguns direitos fundamentais da pessoa humana: dignidade, liberdade, liberdade sexual, escolha quanto ao uso da própria sexualidade, formação de união estável e constituição de um novo núcleo doméstico. Para ele, o indivíduo se torna “subindivíduo” e a personalidade humana desaparece sem esses direitos.
– É por isso que a Constituição chama todos esses direitos de fundamentais, porque são elementares ao ser humano. Um dos objetivos principais da República Federativa do Brasil, é promover o bem de todos sem preconceito de origem social, de idade, geográfica, de cor, de sexo, de raça e quaisquer outras formas de discriminação – explicou o jurista.
Só existe bem estar geral se houver uma sociedade livre de preconceitos. O ex-ministro afirma que esse é um substantivo que se auto explica por ser um conceito prévio e não a posteriori como deveria ser. “Todo conceito é fruto de uma reflexão, de uma experiência, de uma análise, de fatos. O conceito é autorizado por algo externo a ele. O preconceito é algo confinado a mente humana que não se baseia em nada para chegar a essa conclusão”, argumentou Ayres Britto.
– O que a Constituição está dizendo é que o sexo, seja no plano da dicotomia homem e mulher ou da orientação e preferência sexual, não pode ser fator de discriminação e de diferenciação jurídica. É proibido distinguir, separar homem de mulher e homossexual de heterossexual. A não ser quando o direito faz a distinção para favorecer núcleos, segmentos humanos e sociais historicamente vítimas de preconceitos. A Constituição sai em socorro desses segmentos sociais para proibir o preconceito, em um primeiro momento, e depois estabelecer compensações como uma espécie de reparação, por desvantagens historicamente acumuladas – completou o ex-ministro Ayres Britto.
A decisão do STF se tornou marco histórico reconhecido pela Organização Nações Unidas (ONU) como patrimônio documental e arquivístico da humanidade em 2019. Segundo a ONU, essa foi a primeira decisão de uma corte suprema com tamanha abrangência sobre o tema e que influenciou outros países, dentre eles os Estados Unidos da América.
Após o julgamento da causa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu resolução para que todos os tribunais e cartórios do país facilitassem ao máximo, em iguais condições com os casais heterossexuais, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. Além disso, a adoção de crianças, pensões alimentícias, fins previdenciários de proventos, todos os direitos propriamente de casais heteroafetivos aos poucos se estenderam aos casais homoafetivos. “A liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade”, finalizou o magistrado.
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