Decisões do Judiciário são responsáveis pelas principais conquistas do movimento LGBTI+
(Imagem Pixabay)
A maioria das decisões progressistas dos últimos 20 anos que indicaram importantes avanços na conquista dos direitos LGBTI+ no Brasil ocorreu por intermédio do Judiciário. Nas casas legislativas tais questões engatinham por anos. Hoje, por exemplo, há cerca de 270 Projetos de Lei, favoráveis ou não a tais demandas, em tramitação na Câmara. Deles, um dos que têm maior destaque é o PLS 612/2011, da Senadora Marta Suplicy, arquivado desde 2018, o qual reconhece em lei o casamento homoafetivo. Atualmente, o casamento entre pessoas do mesmo sexo só é possível graças à jurisprudência. Para a articuladora nacional da Liga Brasileira de Lésbicas e integrante do Conselho Nacional Popular LGBTI, Leo Ribas não há qualquer perspectiva de avanço no momento atual.
Leo Ribas palestra em evento do Coletivo Cássia, em 2019 (Arquivo Pessoal)
- Não vejo que neste momento a gente vá ter avanço nenhum. Nós estamos com uma bancada muito grande, tanto no Congresso quanto na Câmara Federal, evangélica e que sempre estão se opondo a qualquer tipo de diálogo sobre políticas públicas específicas para nossa população. Mas estamos sim, enquanto Conselho Nacional Popular LGBT fazendo uma análise criteriosa de cada projeto desse que está arquivado, que está em tramitação, que está lá dentro desses dois espaços, para pensarmos em estratégia, sim, de colocarmos de novo para votação - avalia.
Desde o último pleito, em 2018, o Congresso Nacional é ocupado pela maior bancada conservadora dos últimos quarenta anos. A líder da LBL de Curitiba ressalta que como movimento estratégico para que não haja retrocessos diante do quadro atual, o Conselho Nacional Popular tem buscado apoio da bancada progressista para pautar as demandas da população LGBT e tem fiscalizado de perto as ações do governo, fazendo denúncias em órgãos de âmbito internacional, dentre eles a OEA e a ONU, a fim de pressionar as autoridades brasileiras a trazer respostas para os atuais problemas.
- No mês de maio nós tivemos duas audiências públicas, uma no Senado e outra na Câmara Legislativa e agora no mês de junho nós também temos; nós temos o observatório de violação de Direitos Humanos que está trabalhando muito com a temática LGBT e para além disso a gente tem feito um acompanhamento e uma difusão das relações de Direitos Humanos no Brasil para os organismos internacionais - afirma.
CONQUISTAS EM 10 ANOS
Pelo menos, nos últimos dez anos o movimento LGBTI+ tem conseguido importantes conquistas, mas todas ocorreram no judiciário. Em ordem cronológica, temos em 2011, a decisão histórica do então ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Brito que fez a equiparação da união estável homoafetiva (ADI 4277/ADPF 132); em 2013, o direito ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, pelo CNJ (Res. 175/2013); em 2015, o direito à adoção por casais do mesmo sexo pelo STF (RE 846.102); em 2018, o reconhecimento do direito das pessoas trans à identidade de gênero pelo STF (ADI 4275); em 2019, a equiparação da LGBTIfobia ao crime de racismo, também por decisão do STF (ADO 26/MI 4733); em 2020, o fim da proibição à doação de sangue por homossexuais (ADI 5543) e no mesmo ano, o STF também decidiu pela inconstitucionalidade à proibição do debate de questões de gênero nas escolas (ADPF 457).
Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+ (Arquivo Pessoal)
A preocupação pela manutenção desses direitos garantidos é o que também tem pautado as ações de organizações como a Aliança Nacional LGBTI+, uma das mais importantes organizações de promoção e defesa dos direitos humanos e cidadania da comunidade LGBTI+. Para Toni Reis, Diretor Presidente da entidade, uma das ações do movimento para o momento atual passa pela garantia ao cumprimento dessas medidas e pela aprovação dessas leis pelo Congresso Nacional.
- A gente conseguiu a maioria dos direitos no Supremo Tribunal Federal. Então, primeiro, nós precisamos positivar o Congresso Nacional. Ou seja, aprovar também no Congresso Nacional essas leis; também fazer executar todas essas leis, esses direitos que a gente conquistou no STF que sejam executados em todos os municípios, em todos os estados e no Distrito Federal. E pra isso nós temos um programa chamado Cumpram-se. Principalmente a questão da criminalização da LGBTfobia. Então, nesse sentido, entramos em diálogo com todas as Defensorias Públicas, Ministérios Públicos, Secretarias de Segurança Pública e os Conselhos e Comitês estaduais LGBTI+ - revela.
Por mais que as principais conquistas tenham ocorrido no âmbito do judiciário, é importante perceber a importância das ações dos movimentos sociais para conseguir tal resultado. Mais do que isso, é importante que os movimentos permaneçam atentos para qualquer sinal de retirada desses direitos. Isso é o que conta a Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e pesquisadora da história das sexualidades Ronald Canabarro:
- É importante frisar esse ponto, né, porque muitas vezes há uma aura do Direito, como se isso viesse como uma benesse, como um entendimento, “agora nós entendemos”, “então agora a gente vai assumir esse isso como um direito” e na verdade a gente sabe que nunca foi, né”, comenta.
ABERTURA POLÍTICA
Se por um lado, atualmente, o diálogo com o atual governo parece impossível, por outro, até certo tempo o movimento LGBTI+ obtinha certo sucesso na articulação em prol de políticas públicas para a população. Pelo menos era o que acontecia durante os anos de 2004 a 2016, quando representantes do movimento ocupavam espaços estratégicos no governo. Foi nesse período, durante o governo do então presidente Lula, que a Liga Brasileira de Lésbicas ocupou importantes cadeiras no Conselho Nacional de Combate à Discriminação LGBT, no Conselho Nacional de Políticas para as mulheres, no Conselho Nacional de Direitos Humanos e no Conselho Nacional de Saúde.
Além desses espaços, o movimento também conquistou a primeira Conferência Nacional LGBT, a qual definiu prioridades para o enfrentamento da discriminação e da violência, bem como estabeleceu metas para a ampliação da cidadania da população LGBT. Leo Ribas conta que foi naquela ocasião que houve a histórica mudança da sigla GLBT para LGBT que deu maior protagonismo à causa das mulheres.
- Em 2008, o presidente Lula chamou a primeira Conferência Nacional GLBT, na época ainda, e nessa conferência que foi onde nós mudamos o L pra frente, foi uma cobrança do movimento de mulheres lésbicas, da Liga Brasileira de Lésbicas, que daí as outras organizações lésbicas acabaram vindo com a gente, nos apoiando e na abertura da Conferência a gente pediu para que o movimento referendasse a luta das mulheres né, e trouxesse o L pra frente. Então, na abertura foi uma briga bastante grande porque o movimento de homens gays não queriam que isso acontecesse e não queriam perder o palco. Mas nós conseguimos referendar que a sigla ficasse LGBT - comemora.
A integrante do Conselho Nacional Popular LGBT afirma também que com a queda do governo Dilma, em 2016, todos esses espaços foram desocupados por iniciativas do próprio movimento ao entender que a partir daquele momento não seria possível mais uma abertura para a manutenção de diálogo com o governo “nos retiramos de todos esses espaços de controle social e começamos a fazer a luta pelo lado de fora, né, cobrando que a política pública realmente existisse”, completa.
O PERCURSO HISTÓRICO
Ronald Canabarro é especialista em história da sexualidade (Arquivo Pessoal)
O surgimento do movimento LGBT no Brasil é oficialmente reconhecido na década de 70, em pleno momento do Regime Militar. Antes disso, havia pequenos grupos com tentativas regionais de se formar uma organização mas que naqueles primeiros momentos não chegaram a avançar muito. Canabarro aponta alguns grupos que surgem em 78 dentre os quais destaca o Grupo Somos e o jornal Lampião da Esquina que representam marcos da resistência naqueles tempos.
- A gente tem a formação em 78, do Grupo Somos que é o primeiro grupo oficial que se forma; a gente tem o jornal Lampião da esquina, que é um Marco da publicação da comunicação, circulou durante de três anos, né. O Lampião da Esquina foi um jornal feito por gays, feito por homens homossexuais e por pessoas. Existiam algumas mulheres que contribuíram [com o jornal], algumas lésbicas e não tinham pessoas trans naquele momento contribuindo, mas existia, sim, uma temática para abordar a questão trans, a questão travesti - explica.
Pouco depois, com a reabertura política em 1985, o Conselho Federal de Medicina retira o homossexualismo, como era chamado na época, do rol de doenças mentais. A medida foi uma vitória direta do Grupo Gay da Bahia que trilhava os primeiros anos na luta pelos direitos dos LGBTs. Na década de 90, seguindo a uma onda de pressão progressista internacional, a Organização Mundial da Saúde normatiza e ratifica a decisão em todo mundo. A pesquisadora comenta que com relação à transsexualidade o mesmo não ocorreu. O termo só veio a ser modificado, quase 30 anos depois. "Inclusive ela ainda configura lá dentro como uma disforia de identidade de gênero ou transtorno de identidade de gênero, ou seja, ainda está lá de alguma forma, dentro do DSM [manual de diagnóstico de transtornos mentais]", comenta.
Ronald Canabarro durante entrevista para a reportagem
No Brasil, a primeira tentativa dos LGBTs conseguirem pautar suas demandas no âmbito legislativo ocorreu em 88, em plena Constituinte, quando um dos membros do já extinto “Lampião da Esquina”, João Silvério Trevisan, representa os LGBTs ao defender a inclusão de orientação sexual dentro do rol de proteções constitucionais. Canabarro destaca esse momento histórico como um movimento político para garantir direitos na Constituição ainda em 88. Feito que só foi possível por intermédio do judiciário, mais de 25 anos depois. “Essa é uma realidade que já se dava nos anos 80 de uma briga política bastante grande”, completa.
OS PRÓXIMOS PASSOS
Para o diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+, Toni Reis acredita que o maior responsável por esses entraves nas casas legislativas passa pelo Fundamentalismo Religioso, o patriarcado e o machismo. Ele argumenta que um caminho para reverter esse quadro é sensibilizando as pessoas quanto às diferenças. “todo mundo tem seus gostos e o importante é o amor, independente da orientação sexual ou identidade de gênero”, comenta.
A historiadora Ronald Canabarro vai na mesma direção, mas enxerga o futuro com um pouco mais de esperança ao apontar o aumento da representatividade política de pessoas LGBTI+ no pleito de 2018 e indicar esse como um caminho possível para a conquista de novos direitos. Contudo, mesmo com alguns pontos positivos ressalta que é necessário permanecer em alerta.
- A gente tem aí essa seara de direitos sociais sendo sempre atacadas. Então eu acho que é por aí. A gente precisa estar vigilante e lutando constantemente nesse ponto. E, reforçando, a gente tá falando de alguns países, né, enquanto se você pegar o mapa mundial você tem ainda pelo menos um terço dos países que não tem nenhuma legislação protetiva ou que ainda criminalizam. Então ainda há muito necessário a se fazer - conclui.
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