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  • Foto do escritorMarina Louro

Cenário político pode dificultar a adoção de crianças por casais homoafetivos


Alysson, Felipe, Jéssica, Toni Reis e David Harrad, em 2018: o primeiro filho chegou em 2011, com o nome de Toni e David na certidão de nascimento (Arquivo pessoal)


Dez anos depois do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da união civil entre pessoas do mesmo sexo, o Brasil ainda patina na aprovação de leis que afastem os obstáculos para que casais LGBTQIA+ adotem crianças. Operadores do direito afirmam que o cenário político do país é desfavorável a qualquer avanço e representa o risco de regresso.


- Estamos vivendo em uma época de muito sectarismo, intolerância, dicotomias e até retrocessos - afirma o advogado e ex-ministro Ayres Britto sobre a aprovação de leis que assegurem direitos a população LGBTQIA+.


-A gente vive um momento de avanço de retrocesso – disse a juíza da 4ª Vara de Órfãos e Sucessões da Capital, Andrea Pachá.


As perspectivas são desanimadoras. Pachá receia que qualquer proposta legislativa alavancada em direção à concessão de direitos para a população LGBTQIA+ seja sepultada. Para ela, a aprovação de leis que consolidem a adoção por casais homoafetivos está associada à inclusão de direitos.


- Quando falamos de adoção por casais homossexuais, falamos de mais direitos, e não de menos direitos, porque não tiramos o direito de ninguém, só damos mais direito pros outros – complementa.


Em 2011, a justiça reconheceu a união de casais homoafetivos como entidade familiar, possibilitando a adoção conjunta. De acordo com a juíza, a lei seria um recurso legal para assegurar os direitos à união estável e todas as suas implicações, independente do juiz responsável pelo caso ou do período histórico. Ela oferece segurança para que os casais tenham um documento que comprove a união.


- Estranho pra mim é viver numa sociedade que abandona crianças. Ter quem acolha não tem nada de estranho nisso. O preconceito não é racional – afirma.


De acordo com Saulo Amorim, advogado e presidente da ABRAFH (Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas), é preciso fazer uma emenda na constituição, alterar o código civil, ou aprovar uma lei para que não haja mais dúvidas quanto à possibilidade das pessoas LGBTQIA+ casarem e adotarem no Brasil. Ele explica que os casais homoafetivos não podem ser impedidos de adotar enquanto a decisão do STF vigorar, mas nada garante que ela se mantenha em um novo Supremo ou governo.


- Nós precisamos consolidar essa decisão do poder judiciário em leis na Constituição Federal. É esse passo que precisamos dar para que retrocessos não aconteçam.

O advogado comenta que os magistrados e integrantes conservadores do Ministério Público encontram respaldo no governo atual para atrapalhar os processos de adoção por casais.


- Eles não podem ir contra a decisão do STF que nos oferece o direito de ser família, mas podem atrapalhar ao engavetar processos, não cumprindo o tempo para analisar a papelada e apresentando um parecer contrário.


REDATOR DA AÇÃO PREVIA DIFICULDADES


Em uma conversa com os alunos de jornalismo da PUC-Rio, o ex-ministro Ayres Britto falou sobre os bastidores da decisão do STF de equiparar a união estável entre pessoas do mesmo sexo e de sexo diferentes, em 2011. Ele contou que, ao receber a pauta, sabia que seria um tema difícil e complexo para abordar no julgamento.


-Nada pode ser objeto de diferenciação jurídica, a não ser quando o direito faz uma distinção para favorecer grupos sociais vítimas de preconceitos, como mulheres, negros, indígenas e homoafetivos – afirmou aos alunos.


Vale lembrar que, até 2011, a união estável era a que existe “entre o homem e a mulher”, de acordo com o artigo 1.723 do Código Civil. Essa definição, considerada reducionista, dificultava o processo de adoção para casais de pessoas do mesmo sexo, que não conseguiam, na maioria dos casos, comprovar um vínculo afetivo.


Britto diz que buscou afastar o reducionismo da letra da lei ao estender a aplicabilidade do artigo às uniões homoafetivas pelo princípio da interpretação análoga. No entanto, o texto do artigo 1.723 não deixa de fazer menção aos termos “homem” e “mulher”. Apesar de muitos comemorarem a decisão do congresso de 2011, para Saulo Amorim, essa minoria social permanece sem direitos adquiridos.


-Passaram-se 10 anos, entraram três composições legislativas diferentes no Congresso e nenhuma delas conseguiu dar andamento a projetos de lei que já foram apresentados para consolidar a adoção homoafetiva e pra mudar o Código Civil ampliando o conceito de família. Nada disso avançou. Pelo contrario – afirma o advogado.


É o caso do projeto de lei nº 612/2011, de autoria da senadora Marta Suplicy (sem partido), que visa retirar as menções de gênero do artigo 1.723. Após o senador Magno Malta (PR-ES), da bancada evangélica, barrar o projeto, ele foi colocado para a votação, mas não houve quórum. Hoje, está arquivado.


O ex-ministro Ayres Britto complementa ao dizer que a sociedade brasileira é dominantemente conservadora nos costumes.


- Só há bem estar de todos se vivermos em uma sociedade livre de preconceitos – afirma.


BUROCRACIA GERA DÚVIDAS EM CANDIDATOS


Em alguns casos, a burocracia demorada pode despertar dúvidas nos casais: seria uma demora também vivenciada por famílias heteroafetivas ou haveria LGBTfobia no processo? O professor e pós-doutor curitibano Toni Reis (56) contou sobre a luta judicial para conseguir a guarda dos três filhos. Em 2005, antes da equiparação da união estável, ele e o marido, David Harrad (63), deram entrada na Vara da Infância e Juventude de Curitiba, a fim de obter a habilitação para adoção conjunta. Quase três anos depois, o juiz responsável pelo caso permitiu, mas restringiu a idade e o sexo das crianças. Elas teriam que ser maiores de dez anos e somente do sexo feminino.


- Depois de consultar amigos e especialistas, chegamos à conclusão de que a decisão do juiz foi discriminatória e recorremos ao Tribunal de Justiça – relata o casal no texto “Família de fato, família de direito. Dois pais homoafetivos e três adoções necessárias”, de autoria própria.


Após inúmeras implicações judiciais, a decisão da ministra do STF, Carmem Lúcia, a favor, foi proferida em março de 2015, dez anos após o início do processo.


- Uma demora judicial um tanto cruel, tanto para nós quanto para as crianças à espera de adoção – comenta o professor.

No entanto, Toni e David não esperaram a decisão do STF para que pudessem adotar em Curitiba. Viajaram para o Rio de Janeiro em busca do sonho de se tornarem pais e, em setembro de 2011, conheceram o menino Alysson, de 11 anos na época. Após a sentença favorável no mesmo ano, o casal decidiu emitir o novo RG do filho, agora com uma certidão de nascimento com o nome dos dois pais. Toni contou que a atendente não conseguiu fazer o documento, pois o nome da mãe não constava no sistema. O mesmo ocorreu no processo de emissão do CPF.


- Nos Correios não foi possível fazer o CPF porque faltava o nome da mãe. Mandaram procurar a Receita Federal, onde o atendente também não conseguiu fazer pelo mesmo motivo. Finalmente a chefe dele venceu a burocracia e emitiu o CPF do Alysson – o casal contou.


Toni (à esquerda), Alysson e David (à direita) na praia de Ipanema, Rio de Janeiro, em 2011 (Arquivo pessoal)


A burocracia, por outro lado, tem um papel importante quando aplicada igualmente a casais heteroafetivos e homoafetivos, de acordo com a juíza Andrea Pachá. Ela afirma que apesar de ser um processo complexo, o tempo é necessário para dar segurança, transparência e evitar a comercialização de crianças.


Para Toni, a decisão do Supremo, em 2011, contribuiu para a aceleração do processo, pois houve menos burocracia na adoção de seus dois filhos mais novos, Jessica e Felipe, em 2015.


- Houve muita burocracia (em 2011), pois o Judiciário não estava preparado, então eu tive que ir até o Supremo Tribunal Federal. Com a Jéssica não demorou muito - comenta.


O procurador de justiça da Infância e da Juventude, Sávio Bittencourt, acredita que o sistema judiciário está bem preparado para receber casais homoafetivos que desejam adotar. Ele afirma que não tem recebido relatos a respeito da discriminação por parte de juízes, procuradores e assistentes sociais.


- Tenho visto que a orientação sexual dos pais não tem sido um elemento de análise no momento da adoção – disse Bittencourt.


Da mesma forma, Andrea Pachá, que atuou em Vara de Famíliahá mais de 20 anos, desconhece o preconceito por parte desses setores da justiça. A juíza comenta que eles vivem tão perto do abandono, que a tentativa é a de sempre encontrar uma família para a criança.


RISCOS DE REJEIÇÃO NO INÍCIO


O primeiro contato dos pais ou mães com os filhos pode ser desafiador. O procurador da Infância e Juventude Sávio Bittencourt afirma que já acompanhou casos em que a criança preferiu continuar no abrigo por se tratar de pais LGBTs. Para ele, a aceitação dessa formação familiar pelo adotado depende da mudança de paradigmas e do comportamento da sociedade.


O dono de casa Alexandre Louzada (43) e o diretor de um abrigo de animais Francisco Anselmo (43) adotaram três irmãos: Patrick (17), Pablo (15) e Gabriel (12), em 2015. No início do período de convivência, os meninos perguntaram se os pais eram irmãos.


- Explicamos que éramos casados e eles nos associaram a um casal gay que havia aparecido numa novela da Rede Globo. A ficção os ajudou a construírem a própria realidade – contou Alexandre.



Francisco (à esquerda) e Alexandre (no meio) com os três filhos: a família mora em Maricá, no Estado do Rio de Janeiro (Arquivo pessoal)


O processo de adaptação de Alysson, filho de Toni e David, à formação familiar em que estava inserido demorou mais. Não quis conhecer os futuros pais quando soube que era um casal gay, de acordo com Toni. O tempo serviu para que ele se acostumasse com a ideia e aceitasse conhecê-los. Além disso, durante a espera do Instituto de Identificação, quando o casal fazia a carteira de identidade de Alysson, Toni recorda-se que o menino disse: “sabiam que eu tenho nojo de homossexuais?”.


- Mais tarde retomamos essa conversa e falamos que havia nos ofendido, sobretudo porque sabia muito bem que éramos um casal gay antes de aceitar ser adotado por nós. Ele se desculpou e disse que falou aquilo devido ao que aprendeu em função das convicções religiosas dos abrigos e da família acolhedora – contaram Toni e David.


Para o doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Humberto César Machado, o preconceito está no adulto, e não na criança, que deseja apenas proteção, carinho, atenção e segurança independente do gênero de quem cuida. O doutor não percebe diferença no desenvolvimento psicológico entre crianças adotadas por casais homoafetivos e heteroafetivos. Para ele, a desconstrução social das ideias ocorre com o tempo e pode ser lenta.


Saulo Amorim, que além de advogado é fundador do Cores da Adoção, um grupo de apoio à adoção, concorda com Machado. Ele disse que as referências de cuidado, proteção, amparo ou provimento não precisam estar vinculadas a um determinado gênero.


- É preciso descontruir esse lugar binário de ser homem e ser mulher, de ser pai e mãe. Precisamos ser ambos responsáveis por aquela vida que nos foi atribuída, seja pela adoção ou pela biologia – afirma.


Reunião de preparação para o processo de habilitação pra adoção no GAA Cores da Adoção, em Vargem Pequena, Rio de Janeiro (Divulgação)


TRAUMAS PASSADOS PODEM SER SUPERADOS


A juíza Andrea Pachá explica que hoje o processo de adoção é focado na criança. Prepara-se a família para recebê-la e não o contrário, como antes. Há o risco do adotado não chegar grato, pois trás consigo histórias de abandono e traumas passados. É comum que ele manifeste muita dor e sofrimento, ao invés da alegria de ganhar um novo lar. Assim, para Pachá, por maior que seja o acolhimento, há um buraco que é difícil de fechar.


No texto “Família de fato, família de direito. Dois pais homoafetivos e três adoções necessárias”, Toni e David relatam que Alysson sofreu maus tratos antes de ganhar uma família. Ele esteve em sete abrigos diferentes, mas fugia na tentativa de receber o acolhimento da mãe biológica. Revoltado, tinha de ser escoltado pela polícia para que não fugisse das audiências com a juíza responsável pelo caso.


- Nos abrigos, a maioria mantida por organizações de base religiosa, Alyson conta que sofria repressão e castigos bastante desumanos... Ficar de cabeça para baixo apoiado numa parede, ficar ajoelhado em grãos de feijão, ficar sem comer à noite – Toni e David relatam.


Devido ao histórico conturbado, Alysson fazia “birras” no início da convivência. Por isso, os pais buscaram estabelecer limites, sempre levando em conta tudo o que ele passou antes de ser adotado. O casal afirma que a adaptação é um processo gradativo para todos os envolvidos, pois ninguém muda o comportamento da noite para o dia. Assim como em uma família heteroafetiva, as dificuldades na relação podem surgir periodicamente.


Patrick, Pablo e Gabriel, filhos de Alexandre e Francisco, também tem um histórico dramático. Os irmãos moravam na comunidade do Jacarezinho, no Rio de janeiro, e a mãe biológica era dependente de drogas. Após dois dos meninos ficarem com pneumonia e o irmão mais velho com tuberculose, os vizinhos chamaram o Conselho Tutelar e eles foram encaminhados para um abrigo. Lá, o irmão mais velho faleceu, mas os outros se recuperaram. Eles ficaram cinco anos dentro do sistema, sem receber a visita de nenhum familiar, até que foram adotados.


- Acho que uma adoção é diferente da outra e cada caso específico tem seu próprio desafio. No nosso caso, tivemos alguns problemas iniciais com nosso filho mais novo, porque ele havia sido muito traumatizado por contínuas rejeições. O trauma psicológico o levou a ser violento no início, mas com amor, limites e atendimento psicanalítico, ele ficou bem – conta Alexandre.


O dono de casa acredita que o desenvolvimento infantil não tem a ver com os papeis de gênero. Para Alexandre e Toni a ausência de uma mãe não prejudicou seus filhos. Toni afirma que as crianças cresceram com amor, carinho e afeto. Ele conta que Jéssica e Felipe tiram boas notas na escola, e que Alysson estuda Educação Física. Além disso, os três escrevem para seus blogs pessoais e Alysson tem dois livros publicados: “Jamily a holandesa negra: a história de uma adoção homoafetiva” e “Kayke o menino transformado”.


Toni e David escreveram:


“Que viva a família de todas as cores e todos os amores.

Que viva a família de fato e de direito.

Entre perdas e ganhos, entre orgulho e arrependimento, sobrou amor e realização.

Valeu a pena. Muitas emoções, pouquíssimas decepções, e muito, muito entusiasmo de escolher o que somos e fazemos.”


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